Da aldeia para o mundo: professores indígenas participam de congresso com doze países

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Evento é “ponto fora da curva” para índios que enfrentam falta de representação no ambiente acadêmico

Às margens da estrada que dá acesso a uma das mais populosas aldeias indígenas do Pantanal está a casa da professora Maísa Antonio, 39 anos. A aldeia Cachoeirinha tem mais de 1700 habitantes e fica no município de Miranda, a 210 quilômetros de Campo Grande, no Pantanal de Mato Grosso do Sul.

Da área urbana de Miranda até a Cachoeirinha são 15 quilômetros entre rodovia e estradas vicinais. O sinal de celular é péssimo. Internet, apenas com algum investimento, que nem todos os indígenas têm condições de fazer.

Nos fundos de sua casa, em um cômodo cuidadosamente preparado por ela mesma, a professora Maísa está sentada em frente a uma mesa que tem livros didáticos. Sobre os livros, há um aparelho celular, para o qual Maísa fala da sua experiência na escola da aldeia.

A cara conexão, paga por muito esforço pela Maísa, torna possível que ela participe de um congresso universitário virtual ao lado de pesquisadores do Ministério da Cultura do Peru, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da própria Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), realizadora do encontro.

A casa da professora Maísa, fica no acesso à aldeia Cachoeirinha, distante cerca de 15 quilômetros da área urbana de Miranda, no Pantanal de Mato Grosso do Sul. FOTO: Bonito Mais.

De outro ponto da Cachoeirinha, o também professor indígena Aronaldo Júlio participa da mesma mesa de debate que Maísa. Ele é doutorando em Linguística e pesquisador vinculado ao Museu Nacional do Índio da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O evento que possibilitou o encontro virtual de professores indígenas direto de suas aldeias no Pantanal com pesquisadores de organizações brasileiras e internacionais foi o Congresso Internacional de Educação, Língua, Cultura e Território na Perspectiva dos Direitos Humanos (CIELCULTT). O congresso reuniu 562 inscritos de onze países além do Brasil: Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, México, Paraguai, Peru, Portugal, República Dominicana e Uruguai e aconteceu de 19 a 23 de abril, em alusão  ao Dia do Índio.

“A tecnologia vem avançando e nós, indígenas, temos que avançar em busca de entendimento destes recursos. Eu fico muito feliz em ter participado deste mega evento, com muitos países envolvidos, com muitos purutuyas”, afirma Maísa, usando o termo indígena para designar não-índios.

 

Longe, tão perto

Dourados, sede da UFGD, fica a 400 quilômetros de Miranda. Dificilmente haveria recursos para apoiar o deslocamento de Maísa ou Aronaldo para o evento presencial.

Se, por um lado, o congresso online possibilitou a participação dos professores indígenas direto de suas aldeias, dando plataforma para potencializar suas falas, por outro, a dificuldade destes professores para acessar a internet, revela como é importante haver uma política de fomento à pesquisa, especialmente em se tratando de comunidades historicamente marginalizadas como as indígenas. Sem uma rede de apoio, talvez, os professores indígenas da aldeia Cachoeirinha não tivessem participado do congresso, e a representatividade indígena no ambiente acadêmico fosse, mais uma vez, prejudicada.

“É fundamental ouvir a expertise dos indígenas, principalmente de indígenas com larga experiência como educadores, ativistas e pesquisadores de sua língua nativa. Pessoas como eles são as que têm o que ensinar”, diz Ana Suely Arruda Câmara Cabral, coordenadora do Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas (LALLI) da Universidade de Brasília (UnB) e que participou do congresso, também de forma online. “E há também a importância de os indígenas terem assento nas discussões acadêmicas com contribuições únicas”, destaca Ana Suely.

Lugar de fala

Para os professores indígenas o congresso foi uma plataforma em que eles tiveram assento, em que tiveram representatividade, com “lugar de fala”.

A expressão “lugar de fala” é usada nos debates sociais brasileiros e tem a filósofa Djamila Ribeiro como uma de suas difusoras. Em seu livro, “O que é Lugar de Fala”, Djamila diz que “o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas”. De um modo geral, “lugar de fala” quer dizer que não importa apenas o que está sendo dito, mas também quem está dizendo.

Assim, é importante que não apenas indigenistas estudiosos falem sobre as questões que dos povos indígenas. Importa que também os próprios indígenas possam ter suas vozes ouvidas.

“Sou grato à UFGD, que abriu espaço para que o povo indígena terena fale de si mesmo. Este canal permitiu espaço para a expressão do índio terena no cenário de debate cultural e linguístico”, diz o professor Aronaldo Júlio.

“Sou grato à UFGD, que abriu espaço para que o povo indígena terena fale de si mesmo”, diz o professor indígena Aronaldo Júlio, doutorando em Linguística. FOTO: Arquivo Pessoal.

“atitude egocêntrica do indigenista”

O lugar de fala indígena nem sempre é respeitado e pesquisadores indígenas falam sobre a falta de representatividade.

“Sempre são indigenistas falando da cultura, como se fosse 1920 ainda”, diz a professora Fabiane Medina da Cruz Ava Guarani. Fabiane é índia guarani, professora da Faculdade Intercultural Indígena (Faind), coordenadora do Núcleo de Assuntos Indígenas da UFGD e tem críticas à prática de parcela dos pesquisadores indigenistas brasileiros.

“Eu vejo essa atitude egocêntrica do indigenista como um corporativismo profissional de uma ‘classe’ que quer sempre ser dirigente do conhecimento, ou seja, não admite não estar no controle da produção do conhecimento e quer sempre estar no topo da hierarquia intelectual”, declara Fabiane, que nasceu na aldeia urbana Marçal de Souza, em Campo Grande mora atualmente na aldeia guarani Jaguapiru, em Dourados.

Para a professora o comportamento “egocêntrico” de alguns indigenistas gera perdas para a qualidade das pesquisas realizadas sobre povos indígenas. “Creio que a perda do conhecimento é significativa. Pois as teorias sociais não se renovam já que não há liberdade de expressão do próprio indígena acerca das convenções e instituições sociais. Neste caso temos uma visão monológica e estática sobre o mundo, a vida, a natureza, as instituições sociais, a relação econômica e a sobrevivência”, afirma a professora guarani.

“Sempre são indigenistas falando da cultura, como se fosse 1920 ainda”, diz a professora Fabiane Medina da Cruz Ava Guarani. FOTO: Arquivo Pessoal.

“Somos pessoas, temos necessidades reais e não podemos ser tratados como fontes de pesquisa para uma produção científica xenofóbica”, diz Fabiane. “É o que nós indígenas notamos e percebemos na intelectualidade colonialista brasileira até hoje infelizmente”, finaliza.

Dificuldade de acolhimento

A representatividade indígena no ambiente acadêmico enfrenta problemas práticos.

“O que dificulta o projeto acadêmico dos indígenas é a falta de políticas de acolhimento, desde o recebimento quando chegam a universidade, à moradia, às necessidades básicas, cursos de línguas estrangeiras, a depender do curso, assistência psicológica e médica, enfim, o cuidado com o bom acolhimento” diz Ana Suely Arruda Câmara Cabral, da UnB.  “Os meus alunos indígenas fariam mais se tivesses essas condições, inclusive bolsa de estudos”, completa a Ana Suely.

“A UFGD utiliza um programa nacional do MEC [Ministério da Educação] de bolsas para indígenas e quilombolas. Mas desde o ano passado o programa não abre edital para novos cadastros”, relata a professora Fabiane Medina. A UFGD tem, atualmente, 464 alunos indígenas, dos quais 295 são bolsa MEC.

“Ainda falta muito para que as instituições realmente acolham a diversidade”, afirma diz Ana Suely Arruda Câmara Cabral, coordenadora do Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas (LALLI) da Universidade de Brasília (UnB). FOTO: Arquivo Pessoal.

Ponto fora da curva

O congresso promovido pela UFGD, pode ser considerado um ponto fora da curva, pelo protagonismo que conferiu a professores indígenas. “Todas as mesas tiveram um ou mais de um pesquisador indígena falando sobre o tema em debate, do seu ponto de vista enquanto indígena”, afirma a professora Denise Silva, linguista da UFGD e uma das organizadoras do congresso.

“É um evento que contemplou diferentes pontos de vista seja dos pesquisadores daqui da universidade, de fora do estado, de fora do país, tudo isso balizado pelo ponto de vista dos indígenas que são os povos originários, que vivenciam toda esta situação e que hoje estão ocupando os lugares de pesquisadores da universidade”, completou Denise.

“Poder trazer à tona este debate num abril indígena, quando a gente não tem muito a comemorar, mas tem muito a reivindicar é o papel da universidade e fazer isso buscando a efetivação dos direitos humanos dessas comunidades”, destaca a professora Denise Silva, organizadora do congresso. FOTO: Arquivo Pessoal.

O reitor da UFGD, professor Lino Sanabria, diz que os saberes tradicionais dos povos indígenas são respeitados a UFGD numa valorização “que vai além das palavras, é posto em prática com a presença dos estudantes indígenas nas mesas de debate, expondo o seu ponto de vista em interlocução com o saber e linguagem acadêmica”. Sanabria lembra que “A UFGD é uma das poucas instituições no Brasil que conta com uma Faculdade Intercultural Indígena, e o compromisso com a comunidade indígena de Mato Grosso do Sul é parte da identidade da UFGD”.

“O compromisso com a comunidade indígena de Mato Grosso do Sul é parte da identidade da UFGD”, diz Lino Sanabria, reitor da UFGD. FOTO: Assessoria UFGD.

“Poder trazer à tona este debate num abril indígena, quando a gente não tem muito a comemorar, mas tem muito a reivindicar é o papel da universidade e fazer isso buscando a efetivação dos direitos humanos dessas comunidades”, destaca a professora Denise Silva.

“A universidade tem que buscar novos parceiros para entender nós indígenas e a gente entender a universidade que tem um papel fundamental na nossa formação”, finaliza a professora Maísa Antonio.

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